AJUDA NÃO É PARA QUEM PRECISA, É PARA QUEM PROCURA

Cresci fascinada pelo cinema. Os filmes sempre foram os meus livros predilectos. Não faltou a imensa biblioteca em casa. De quando em vez, explorava os títulos e os nomes dos autores que descansavam nas prateleiras da imensa estante da sala, e pouco mais. Porque as minhas enciclopédias eram as projectadas no grande écran: as histórias, os diálogos, a fotografia, o guarda-roupa, a caracterização, a facilidade com que me teletransportavam os seus cenários e me apaixonava pelas personagens, pelo incrível talento dos actores e dos realizadores. Sabia os seus nomes todos de cor. Sem o mínimo esforço. Difícil era assimilar e memorizar o que aprendia na escola. Com o cinema, fácil. É estranho mas havia momentos onde sentia que a minha realidade era pura ficção.
Absorvi o seu lado mais humano, independentemente dos repetidos clichés. Porque os filmes são histórias contadas por pessoas, lições de vida, de factos reais, de criatividade, fantasia, drama, tragédia, felicidade, humor, sátira, de finais que não foram vividos mas sonhados e/ou desejados. Uma viagem de oportunidades, dar asas à imaginação e sentir. Quantas vezes, aquela frase-chave (guardei tantas) resumia tão bem o que eu sentia mas incapaz de expressar no meu verbo. Continuo a mergulhar na sétima arte, já não acompanhada da mesma avidez de memória de outrora, mas aberta às histórias que fazem as minhas emoções dançar. Com o caminhar no tempo, o meu entusiasmo tem evoluído para a escrita dos livros. Mesmo mesmo.
A mudança é um processo natural que causa estranheza. Ai, estás tão diferente! Pois, a vida (pelo menos a minha vida) mostra-me a céu aberto, que a eternidade só à morte pertence. À morte e aos sonhos. Mas isso são outros tostões.
O que é certo e seguro hoje vai transformar-se no seu oposto amanhã. Sendo que o amanhã pode levar dias, meses, anos ou décadas. Um exemplo na primeira pessoa: antes de marcar a minha tatuagem, estive anos (sim, anos) a imaginá-la gravada na minha carne, para sempre. Todos os dias, de olhos cerrados, visualizava a bichinha tatuada e garantindo o aval para avançar sem arrependimentos, pois eu "sabia" que seria um amor para a eternidade. Claro está que, vinte anos depois, o sentimento transmutou. O que acontece no processo de facilitar um relacionamento inscrito ad eternum, é adaptarmo-nos à coisa. Até a mente colabora em nos distrair daquela parte do corpo. Nem quero imaginar se naquela época me tivesse dado uma pancadinha mais forte e navegar a tinta por áreas mais vastas. Hoje, seria um grande pincel. A verdade é que aprendi a encarar a pequena arte tatuada em mim como uma boa aprendizagem: nada é eterno.
Acredito que no caminho da evolução, apuramos, neutralizamos ou definhamos. Porque o comboio passa sempre. E pára na estação. Resta saber se entramos. Ou morremos na paragem. E é no definhar que hoje me quedo...
Nasci em África corria o ano de 1974. Aos 4 anos fui para a Ásia e aos 9 a mudança "definitiva" para Portugal. Fui abençoada pela presença em vida de todos os meus avós. Três, dos quais, agraciados como bisavós. Vivi uns anos com os maternos. Guardo bem a imagem de tristeza da minha avó São. A única nascida em Portugal, mas creio que a única cuja alma quedou em África. Apenas arrastou o seu corpo para cá. Imagino o quão doloroso é ter de deixar para trás toda uma vida construída e começar de novo num T2 minúsculo e sem o recheio, literalmente, das suas memórias e histórias que nunca chegaram a atracar em porto lusitano. Por mais que a família procurasse animar a minha avó, convencê-la a sair de casa, passear, poucos eram os momentos onde acedia. Quando se definha por dentro e não urge a vontade, o desejo, o esforço pessoal, de pouco serve o esforço exterior.
A vida, pelo menos a minha vida, ensina-me todos os dias que a vida é uma escolha. E as escolhas podem mudar totalmente a direcção do nosso caminho. Mesmo com todas as vicissitudes pelo meio. Podemos repetir os padrões familiares e definhamos (sim, porque repetimos grande parte das vezes e de forma inconsciente), desistindo de nós, caindo na rotina do apego, vestindo a pele da vítima, alimentando a carência faminta por atenção. Há quem coloque a aliança no dedo comprometendo-se fielmente a este relacionamento, e firme em arrastar outros consigo num poliamor de decadência. É que a miséria adora companhia. E é manhosa, pois invade a nossa consciência de culpa. Rotula(m)-nos de egoísmo, frieza, mal agradecimento, de uma tremenda falta de respeito e consideração pela "coitadinha" da nossa mãe que não tem condições, pelo "coitadinho" do pai que é doente. Pobres abandonados pela falta de consideração dos filhos.
O sentimento de culpa consome-nos às entranhas. Mesmo que já esteja esgotado o esforço de apoiar e tentar ajudá-los, mesmo em total desgaste físico, mental, emocional e energético. A culpa insiste em persistir. O que vamos fazer? Quem vais escolher? Ser drenado até definhar continuando o legado dos traumas familiares? Ou vais ser aquele que, finalmente, (se) escolhe mudar a história?
Assisto todos os dias a pessoas serem sugadas por colocarem (sempre) os outros em primeiro lugar. Nada errado dar a mão e ajudar. Nada. Não é esse o tema. Quando há uma energia de vitimização, carência, dependência e inércia, e queremos dar o nosso apoio, neste caso apenas alimentamos estas sombras, e jamais a cura acontece. Quantos vivem mais a vida dos outros e já desistiram da sua? Quantas pessoas estão nesta situação? Quantas se nutrem das vidas (virtuais) dos outros? É que dá muito mais trabalho cuidar de nós, mergulhar fundo nas nossas dores e agir. O estímulo até pode vir de fora, mas a vontade só vem de dentro. O impulso é interior. Se não for activado o interruptor da mudança, de dentro para fora, todo o exterior que sente pena e medo da crítica e julgamento alheio, será drenado e sugado até ao tutano.
Seja com pai, mãe, filhos, companheiros, amigoas, colegas, o corte é essencial para a nossa sobrevivência. E fazer o corte não é por falta de amor. Pelo contrário! É com todo o amor. Amor-próprio, amor pelos outros e respeito pelas escolhas de todos os envolvidos. Com toda a dor que isso acarreta nos nossos ossos.
Aprendi uma grande lição (mais uma) recentemente: os filhos não julgam os pais. E quantos pais não abusaram e mataram os seus? Sei bem. Mas mesmo assim, os filhos não julgam os pais. É uma grande aprendizagem se nos deixarmos mergulhar nesta sabedoria. Eles fizeram, e fazem as suas escolhas, assim como nós fazemos as nossas. E nós temos a autoridade de escolher quem queremos Ser, que caminhos decidimos seguir.
Há um filme que relata bem este cenário, Hillbilly Ellegy, nada aclamado pela crítica, mas eu bem ralada, pois é um estouro de história. Verídica! Um retrato real de uma América decadente, onde o protagonista cresceu no meio de uma família "vítima" de uma sociedade tóxica e bruta somando dependências. Geração após geração. Num momento crucial para mudar a sua história é arrastado para as crises familiares repetitivas. Tem de escolher entre sucumbir nos mesmos problemas dos seus, ou optar por mudar a sua história. E fez o corte. Por amor. A si e à sua família. Sim, teve um braço de apoio forte. Mas podia não ter sido o suficiente. A decisão final foi só dele. Abraçou uma carreira com novas oportunidades para curar traumas e mudar o rumo da sua linhagem, escreveu um livro baseado na sua história e virou filme da Netflix. Hein?! Como ele partilha no fim: somos a nossa família, mas escolhemos todos os dias quem nos queremos tornar. Porque a ajuda não é para quem precisa, é para quem procura (mais um ensinamento de outro belo filme: Thanks for Sharing).
Precisamos nos elevar. De aceitar os nossos pais, os nossos avós e todos os que vieram antes. Estão nas memórias dos nossos ossos, quer queiramos ou não. Elevarmo-nos juntos no caminho desafiante da interdependência de seres que muitas vezes vibram em frequências totalmente diferentes, sendo do mesmo sangue. De libertar as dores, os traumas e criar oportunidades de mais amor. Muito mais amor. Mas se algum dos "nossos" escolher não fazê-lo, respeitar. Respeitar a decisão de quem quer permanecer no seu ciclo de vício. Porque precisar de ajuda, precisamos todos. É, no entanto, decisivo assumir e tomar a iniciativa de procurar ajuda. De igual forma, que bonito seria libertar, aceitar e abençoar quem escolhe um novo caminho.
Aceitas-te? Abraças-te? Escolhes-te? Porque viver é uma escolha.
Seguimos juntos no caminho da cura